sexta-feira, 8 de janeiro de 2010

Uma Efeméride, Um Herói, Uma Carta


Sempre houve heróis na nossa rica e vasta História. Este que vos trago hoje, faleceu no dia de hoje de há 108 anos. Ficou célebre, entre várias facetas, pelo aprisionamento do vátua Gungunhana.


"António Enes, então comissário régio em Moçambique, pediu reforços ao Governo português, mas perante a indecisão deste, decidiu dar por terminada a sua missão e regressar a Portugal. Em consequência, a 10 de Dezembro de 1895, Mouzinho de Albuquerque foi nomeado governador do distrito militar de Gaza, prosseguindo com a campanha iniciada no ano anterior, entendendo que só através da prisão ou morte de Ngungunhane, então já alcunhado o Leão de Gaza, a soberania portuguesa sobre os territórios do Império de Gaza poderia ser conseguida.
Após uma temerária marcha de três dias em direcção a
Chaimite, as tropas conduzidas por Mouzinho cercaram a povoação, prendendo o chefe vátua e grande parte da sua família, forçando-o a entregar mil libras em ouro, oito diamantes, armas e munições e todo o gado e marfim de que dispunha. Contudo, os relatórios dos outros militares que participaram na campanha, em particular de Soares de Andrea, indicam que Mouzinho sabia da decisão de Ngungunhane de não oferecer resistência, o que de facto se verificou.
No dia
6 de Janeiro do ano seguinte, Gungunhana e os restantes prisioneiros foram entregues, oficialmente, em Lourenço Marques, por Mouzinho de Albuquerque ao governador-geral da colónia para, dias mais tarde, serem enviados para Lisboa por ordem expressa de Jacinto Cândido da Silva, então Ministro da Marinha e Ultramar.
Depois daquele êxito militar, que granjeou numerosas manifestações de apoio em
Portugal e ampla cobertura na imprensa internacional, Mouzinho de Albuquerque foi nomeado governador-geral de Moçambique, a 13 de Março de 1896, tomando posse a 21 de Maio. A 27 de Novembro, do mesmo ano, foi nomeado Comissário Régio.


Foi nomeado, a 28 de Setembro de 1898, ajudante de campo efectivo do rei D. Carlos I de Portugal, oficial-mor da Casa Real e aio do príncipe D. Luís Felipe de Bragança. A este escreveria a dada altura uma carta que não posso deixar de publicar:


Meu Senhor:

Quando Vossa Alteza chegou à idade em que a superintendência da sua educação tinha que ser entregue a um homem, houve por bem El-Rei nomear-me Aio do Príncipe Real.

Foi Sua Majestade buscar-me às fileiras do Exército.

Não escolheu por certo o militar de mais valor, mas simplesmente aquele a quem uma série de acasos felizes mais ensejo dera de provar que sabia, custasse o que custasse, obedecer ao que lhe era ordenado e que também sabia, doesse a quem doesse, fazer cumprir as ordens que dava. Não por certo a Vossa Alteza como filho e como súbdito, e menos a mim como soldado, compete apreciar e criticar as determinações de El-Rei.

A Vossa Alteza como a mim, deu Sua Majestade uma ordem, a ambos nós cumpre obedecer-lhe e nada mais. Mas para bem lhe obedecer não basta ver-lhe a letra, é necessário estudá-la, descortinar-lhe o espírito.

Escolhendo um soldado para vosso Aio, que fez El-Rei?

Subordinou a educação de Vossa Alteza ao estado em que se acha o País.

Nesta época de dissolução, em que tão afrouxados estão os laços da disciplina, entendeu Sua Majestade que Portugal precisava mais que tudo de quem tivesse vontade firme para mandar, força para se fazer obedecer.

E como ninguém pode ensinar o que não sabe, o que não tem praticado, foi El-Rei procurar o vosso Aio à classe única em que se encontra quem obedeça sem reticências e mande sem hesitações.

Por esse motivo, o primeiro dos meus deveres é fazer de Vossa Alteza um soldado.

É Vossa Alteza Príncipe, há de ser Rei; ora, Príncipe e Rei que não comece por ser soldado, é menos que nada, é um ente híbrido cuja existência se não justifica.

Há poucos anos andava pela Europa, num exílio vagabundo de judeu errante, um Imperador que num momento de crise esqueceu que o seu título vinha do latim "Imperator", epíteto com que se saudavam os vencedores, e que se não vence sem desembainhar a espada -- sine sanguine victoria non est.

Por um erro igual já subiu um Rei ao cadafalso e outros foram despedidos do trono para o exílio sempre doloroso e humilhante. Príncipe que não fôr soldado de coração, fraco Rei pode vir a ser. O que foram na verdade os Reis primitivos?

Guerreiros audaciosos que os companheiros de armas levantaram nos escudos acima das suas cabeças.

E o que foi o maior dentre os Reis, aquele cujo nome ribomba como um trovão na história deste século?

Um militar ambicioso que, elevado ao Império pelos seus soldados, não se deu por contente enquanto não pôs o pavês que o levantara em cima das costas dos outros Reis da Europa que lhe serviram de pés ao trono.

E entretanto, a despeito da sua incomparável grandeza de ânimo, a despeito das qualidades únicas de mando com que a Providência o dotara, talvez para castigo de muitos, por certo para exemplo de todos, caiu esse colosso e o grande Imperador foi derrubado por esses mesmos que tanta vez vencera.

Faltava-lhe a tradição da Monarquia, da linhagem Real, que cimenta e consagra a autoridade dos Reis legítimos.

Mas nessas mesmas linhagens Reais só foram grandes os que souberam lançar mão da espada sempre que lhes foi necessário.

Por isso, repito, primeiro que tudo tem Vossa Alteza que ser soldado.

Aprenderá a sê-lo na história de seus avós.

Este Reino é obra de soldados.

Destacou-o da Espanha, conquistou-o palmo a palmo, um príncipe aventureiro que passou a vida com a espada segura entre os dentes, escalando muralhas pela calada da noite, expondo-se à morte a cada momento, tão queimado do sol, tão curtido dos vendavais como o ínfimo dos peões que o seguia.

Firmou-lhe a independência o Rei de "Boa Memória", que tantas noites dormiu com as armas vestidas e a espada à cabeceira, bem distante dos regalos dos Paços Reais.

E para a formação de vossa Casa concorreu com o ele o mais branco dos seus guerreiros, que simbolizou e resumiu em si quanto havia de nobre e puro na História Medieval, um herói e um santo.

Mais tarde o Príncipe Perfeito, depois de haver mostrado que sabia terçar lanças em combate com o melhor dos cavaleiros, depois de haver abatido de vez todas as cabeças que se erguiam por demais altivas perante a Corôa Real, deu pela força da sua vontade de ferro um impulso de tal ordem às nossas naus, que foram ter ao Cabo da Boa Esperança, abrindo a Portugal o caminho por onde chegou ao apogeu da glória.

Soldados, se lhes pode bem chamar a estes, porque tiveram o desapego da vida, a força do mando, a obediência cega àquilo que acima de tudo deve imperar nos Reis -- a ideia fixa e pertinaz da glorificação do seu nome e da grandeza do Reino onde Deus os fez os primeiros de entre os homens.

Para não ser injusto nem ingrato, não deve Vossa Alteza lembrar-se somente dos felizes porque nem só eles foram soldados.

Houve um Rei de Portugal que, não podendo ser vencedor, soube morrer herói.

Não tendo alcançado a vitória ambicionada, procurou a morte gloriosa. "A liberdade Real só se perde com a vida", foram as últimas palavras que se lhe ouviram e do cativeiro infamante salvou-o a morte, única libertadora invencível porque não há algemas que prendam um morto.

Errou, é certo, mas a morte de valente, expiatória e heróica, redime os maiores erros.

Bem merece ele o nome de soldado, bem estudada e meditada deve ser a sua História, porque pelo estudo e pela meditação se formam as almas e a alma de um Príncipe para tudo deve estar temperada, até para as maiores desgraças.

Soldado também e como poucos, foi D. Pedro IV.

Trabalhou e combateu como soldado e teve a audácia precisa nos lances decisivos, a resignação estóica nas mais dolorosas crises, a presença de espírito nas situações mais difíceis, a decisão rápida e pronta para aproveitar as vitórias.

E tanto se lhe enraizaram na alma os brios de soldado que, quando se viu insultado, apupado sem poder desembainhar a espada que tão bem o houvera servido, estalou de dor.

As chufas com que o populacho cobarde e ingrato lhe pretendeu enlamear a farda, foram-lhe direitas ao coração, mataram-no.

Estude Vossa Alteza a História desses seus Avós.

Leia-a, relei-a, medite-a, estude-a, meta-a bem na cabeça e no coração.

Na convivência deles aprenderá Vossa Alteza a ser como eles, forte, justo, simples e verdadeiro.

E bem compenetrado do que eles fizeram, conhecendo-lhes a vida dia a dia, sentirá Vossa Alteza que deles vem, que é um deles.

Assim sonhará com futuros de glória que se assemelhem a esse passado de grandeza, e sonhar assim é uma felicidade e uma força. Triste do homem que só cuida do presente, que só preza a intimidade dos vivos.

Pobre daquele que precisa adormecer para sonhar com o futuro.

No olhar saudoso para o que já passou, no imaginar o que há de vir se vai formando a alma, se lhe vão apurando as qualidades, desenvolvendo a força.

E chegada a ocasião de as aproveitar, de as pôr em acção, cai-se-lhe em cima como o milhafre sobre a presa e não se deixa escapar.

A ciência da vida assemelha-se à arte da guerra, em que numa e noutra é mais preciso que tudo aproveitar as ocasiões e para o fazer é necessário o exercício constante, a trenagem; ora, o estudo e a meditação constituem a trenagem do espírito.

Nasceu Vossa Alteza numa época bem desgraçada para este País.

Foi talvez um favor de Deus porque mais na desventura que na felicidade se prova a força do carácter.

Em todo o caso é bem certo, meu Senhor, que a vossa história tem sido muito triste porque, convença-se bem Vossa Alteza, os Príncipes não têm biografia, a sua história é, tem de ser a do seu povo.

Nessa história, entretanto, há algumas páginas que Vossa Alteza pode ler sem que lhe corem as faces de vergonha, sem que lhe subam aos olhos lágrimas esprimidas do coração triturado de humilhações.

Essas poucas páginas brilhantes e consoladoras que há na história do Portugal contemporâneo, escrevêmo-las nós, os soldados, lá pelos sertões da África, com as pontas das baionetas e das lanças a escorrerem sangue.

Alguma coisa sofremos, é certo; corremos perigos, passámos fomes e sedes e não poucos prostraram em terra para sempre as fadigas e as doenças. Tudo suportámos de boa mente porque servíamos El-Rei e a Pátria, e para outra coisa não anda neste mundo quem tem a honra de vestir uma farda!

Por isso, nós também merecemos o nome de soldados; é esse o nosso maior orgulho.

Tudo é pequeno neste nosso Portugal de hoje!

O mar já não é curral das nossas naus, mas sim pastagem de couraçados estranhos; foram-se-nos mais de três partes do Império de além-mar e Deus sabe que dolorosas surpresas nos reserva o futuro.

Não tiveram, portanto, as guerras em que agora temos andado, o brilho épico dos feitos dos nossos maiores.

Mas no campo restrito em que operámos, com os poucos recursos de que dispúnhamos, não fizémos menos nem pior do que outros bem mais ricos e poderosos.

A que devemos este resultado?

A que no homem do povo em Portugal ainda se encontram as qualidades de soldado: a resignação, a coragem fria e disciplinada, a confiança nos superiores e, mais que tudo, a subordinação.

E é preciso que Vossa Alteza, soldado por dever e direito de nascimento, se possua bem da ideia de que a subordinação é a primeira de entre as virtudes militares. Já a tenho ouvido alcunhar de renúncia da vontade.

Ora, ninguém como o soldado carece de força de vontade, porque mais que em coisa alguma se demonstra ela na prática da obediência.

Renunciar ao capricho, ao egoísmo, à indolência, a tudo quanto o vulgar dos homens mais aprecia e estima, ter por único fim servir bem, por único enlevo a glória, por único móvel a honra e a dignidade, não é renúncia da vontade.

E se nós que somos soldados somente desde o dia em que nos alistámos e podemos voltar à classe civil de onde saímos, precisamos para tudo de muito querer e saber querer, quanto mais um Príncipe para quem nascer foi assentar praça e que só pode ter baixa para a sepultura!

De vontade e vontade de ferro precisará Vossa Alteza no duro mister para que Deus o destinou. Houve Reis, meu Senhor, que para desgraça dos seus povos adormeceram no trono em cujos degraus haviam nascido e nesse dormir esqueceram a missão que lhes cumpria desempenhar.

No fim do século passado, o povo francês sacudiu-os de forma tal que os deveria ter acordado para sempre e, desde então, Príncipe que dormitasse no trono acordava no exílio.

Assim deve ser.

Castiga-se a sentinela que se deixa vencer pelo sono e o Rei é uma sentinela permanente que não tem folga porque, nomeado por Deus, só Ele o pode mandar render e então envia-lhe a morte a chamá-lo ao descanso.

Enquanto vive tem o Rei de conservar os olhos sempre bem abertos, vendo tudo, olhando por todos.

Nele reside o amparo dos desprotegidos, o descanso dos velhos, a esperança dos novos; dele fiam os ricos a sua fazenda, os pobres o seu pão e todos nós a honra do país em que nascemos, que é a honra de todos nós!

Para semelhante posto só pode ir quem tenha alma de soldado.

Porque ser soldado não é arrastar a espada, passar revistas, comandar exercícios, deslumbrar as multidões com os doirados da farda.

Ser soldado é dedicar-se por completo à causa pública, trabalhar sempre para os outros.

E para se convencer, olhe Vossa Alteza para o soldado em campanha.

Porventura vê-o só a marchar e a combater?

Cava trincheiras, levanta parapeitos, barracas e quartéis, atrela-se às viaturas, remenda a farda, cozinha o rancho e o que tem de seu trá-lo às costas, na mochila.

Desde os misteres mais humildes até ao mais sublime, avançar de cara alegre direito à morte, tudo faz porque todo o trabalho despido de interesse pessoal entra nos deveres da profissão.

Trabalho gratuito, sempre, porque o vencimento do millitar, seja pré, soldo ou lista civil, nunca é remuneração do serviço, por não haver dinheiro que pague o sacrifício da vida.

É assim que, por mais que espíritos desorientados tenham querido obliterar as tradições de honra do Exército, a profissão entre todas nobre, foi, é e há de ser sempre a militar porque nela se envolve tudo que exige a anulação do interesse individual perante o da colectividade.

É por isso que ninguém como o Rei tem de se esquecer de si para pensar em todos, por isso que ninguém como Ele tem de levar a abnegação ao maior extremo, ninguém como ele precisa de ser soldado na acepção mais lata e sublime desta palavra, soldado pronto da recruta em todas as armas, instruído em todos os serviços, desde o de cavalaria que, numa galopada desenfreada através de uma saraivada de balas, vai completar com a carga a derrota do inimigo, até ao do maqueiro que vai buscar os feridos à linha de fogo, ao enfermeiro que deles cuida na ambulância.

Tão bom Rei, tão bom soldado foi D. Pedro V nos hospitais, como outros nos campos de batalha, porque a coragem e a abnegação são sempre grandes e nobres, seja onde fôr que se exerçam, e tudo que é grande e nobre é próprio de Rei e de soldado.

Não faltará ensejo a Vossa Alteza de revelar aquelas qualidades. Não lhe escassearão por certo provações e cuidados, revezes que trazem o desconforto ao espírito, lances dolorosos que desconsolam da vida.

Para todos eles carece Vossa Alteza de estar preparado, temperado pela educação, pelo estudo dos bons exemplos, pela firme vontade de vir a ser um Príncipe digno desse nome e do da sua Casa.

E para ser Príncipe é preciso primeiro que tudo ser Homem.

Se para descanso de seu espírito vaticinasse a Vossa Alteza um futuro risonho de despreocupações e gozos, faltaria por completo ao meu dever.

Ao escolher-me para vosso Aio, disse-me El-Rei: "Faze dele um homem e lembra-te que há de ser Rei".

Proporcionando a Vossa Alteza o conhecimento do que fizeram em África os seus mais leais servidores, apontando-lhe com seu exemplo, procurando temperar-lhe a alma para as mais duras provas por que pode vir a passar, não faço mais que cumprir as ordens de El-Rei e procurar, como tenho sempre feito, corresponder à confiança de Sua Majestade.

A Vossa Alteza cumpre realizar as esperanças de seu Augusto Pai e nosso Rei, as esperanças de todos os Portugueses.

Que Deus o guie e proteja nesse difícil e glorioso caminho, é o mais ardente voto do

Seu Aio muito dedicado

Joaquim Mouzinho


A sua posição crítica face à política e aos políticos da sua época e os rumores sobre a seu comportamento desumano durante as campanhas em África, levaram a que fosse progressivamente ostracizado e envolvido num crescente clima de intriga.
Incapaz de, pela sua própria formação militar rígida e pelo feitio orgulhoso,resistir ao clima de intriga acerca do seu comportamento em África e à decadência em que a monarquia agonizava, Mouzinho de Albuquerque preparou minuciosamente a sua morte, suicidando-se no interior de um coupé, na
Estrada das Laranjeiras no dia 8 de Janeiro de 1902.

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