quarta-feira, 27 de janeiro de 2010

Mestre João Nuncio, 34 anos de Saudade.



João Alves Branco Núncio nasceu em Alcácer do sal a 15 de Fevereiro de 1901. Filho de lavradores viveu sempre em permanente contacto com a terra pela qual era apaixonado. “O cheiro da terra molhada, que os poetas cantam, é um grande estimulante. Anima-nos sempre a maiores empreendimentos. Se a terra nos ajuda tanto, devemos-lhe gratidão”, afirmou o cavaleiro numa das suas crónicas.

O seu pai criava touros de lide pelo que cedo despertou para aquela que viria a ser a sua verdadeira vocação: a de cavaleiro tauromáquico. Com apenas 13 anos, João Núncio fazia a sua primeira apresentação em público na Praça de Touros de Évora. No entanto, obrigado a prosseguir os estudos, é forçado a deixar as arenas por algumas temporadas.

Só regressa às lides em 1917, depois de ter concluído o Curso Geral do Comércio na Escola Académica de Lisboa, onde conhece o seu amigo e companheiro de arenas, Simão da Veiga. Começa então a actuar em praças de província, mas o seu estilo inovador e o génio que revela na arte do toureio deixam adivinhar a brilhante carreira que o cavaleiro viria a ter.

Apadrinhado por António Luís Lopes, João Branco Núncio recebeu a alternativa a 27 de Maio de 1923, na histórica Praça de Touros do Campo Pequeno, em Lisboa. Na altura, o cavaleiro era já figura de destaque no meio tauromáquico. Uma semana depois de receber a alternativa é contratado para tourear no Campo Pequeno, mas faz constar do seu contrato uma cláusula em que exige lidar apenas touros puros, ou seja, animais que nunca tivessem sido toureados ou corridos em praça.

Com a ajuda do seu amigo Simão da Veiga, João Núncio inicia uma revolução na tourada portuguesa que conduz ao abandono do uso do touro corrido. O cavaleiro revela-se também inovador na forma como preparava as suas montadas. Cada um dos seus cavalos adaptava-se a uma lide específica.

Conhecido como o “Califa de Alcácer” e considerado como uma das mais altas figuras do toureio equestre, João Núncio conquistou o público dentro e fora de Portugal com o seu estilo espectacular e figurativo. Toureou pela última vez a 21 de Outubro de 1973. Ao longo da sua carreira, terá participado em cerca de mil touradas, lidado mais de dois mil touros e utilizado 61 cavalos.

Morreu a 26 de Janeiro de 1976, na Golegã.
UM HOMEM: João Branco Núncio•
Que outra figura poderia escolher para breve antecâmara de crónicas taurinas?
Raros homens, neste século de galopante putrefacção do carácter, reuniram, como ele, tão altas virtudes de português autêntico: o amor à terra, a coragem moral e física, a generosidade discreta - quase humilde - o sacrifício abnegado nas mais cruéis circunstâncias.
Vejo-o fechando na mão tisnada um punhado de torrão seco, enquanto os olhos perscrutavam um céu desesperadamente nu de ansiada chuva. Na luta contra a terra, conquistara honradamente os frutos que generosos só são quando por eles se sangra um trabalho tenaz, constante.
Vejo-o fechando na mão tisnada o ferro com que, nas arenas ardentes de sol e emoção, desafiava o toiro, na mais nobre e tradicional festa popular portuguesa. Na luta contra a fera, soubera grangear o mais alto troféu de um toireiro: a admiração, o amor do povo que, ali, com ele se irmanava na valentia instintiva, no gosto por essa arte cinética secular.
Vejo-o, enfim, fechando na mão tisnada as rédeas amargas, quando vilmente espoliado da enxada que sempre trouxera na carne para desbravar a terra, empunhava agora a única que lhe restava - na alma: a do toireio equestre.
A este trouxera a inovação, o sentido simplista de síntese e medidas, e uma grandeza inolvidável.
Não só como Centauro se oferecera aos toiros. De igual, lidava-os a pé, de capote e muleta; corria-os em campo aberto, na euforia do derrube, no apadrinhamento da apartação dos bezerros - a mesma euforia e também o mesmo anseio criador com que sofria o despontar e o envigorar das searas, dos arrozais, da vida que só a terra dá e o homem rouba...
Com Núncio passou o toireio equestre a definir-se por axiomas diferentes, magistrais. Poder-se-à dizer que se tornou fronteira de estilos na lide montada: antes de Núncio; depois de Núncio. Contudo, na sua modéstia natural parecia não se aperceber de que criara uma nova era tauromáquica que seus contemporâneos seguiriam: os cânones nuncistas.
Como Juan Belmonte, para o toireio a pé, João Núncio foi expoente máximo para o toireio a cavalo. Em crónica futura se falará desta Arte.
Nasceu João Alves Branco Núncio a 15 de Fevereiro de 1901, na Herdade de Parchanas, de São Romão, para onde seu avô, Joaquim Mendes Núncio, lavrador da Golegã, se trasladara, em 1878. Aí, em Alcácer do Sal, cingiu esporas. Aos 13 anos, a 23 de Agosto de 1914, toireou pela primeira vez em público, num cavalo - Teodoro - que fora de Manuel Casimiro, quando a glória da "Festa Brava" equestre se disputava entre este cavaleiro e o Morgado de Covas. Depois, alternando com seu pai, Inácio Augusto Murteira, surgiu na Praça de Évora, a 20 de Setembro desse mesmo ano, "não apenas como um caso de precocidade, mas também, e principalmente, como deslumbrante revelação artística" - aplaudiu a crítica: era a sua segunda corrida.
Finalmente, veio a hora da regra tradicional: na tarde de 27 de Maio de 1923, António Luís Lopes concedeu-lhe a alternativa, na Praça do Campo Pequeno. Ele próprio a concederia, mais tarde, a onze cavaleiros tauromáquicos: Dr. Fernando de Andrade Salgueiro e Dom Vasco Jardim (1938), Francisco Murteira Correia (1943), Eng.° José Rosa Rodrigues (1944), Dom Francisco de Mascarenhas (1945), Francisco Sepúlveda (1952), Gastón dos Santos (1954), seu filho, Eng.° José Barahona Núncio (1962), Eng.° José Samuel Lupi e Alfredo Conde (1963), Frederico Cunha (1968) e José João Zoio (1972).
Em Espanha, onde múltiplas vezes ergueu as praças de entusiasmo e admiração, foi o primeiro cavaleiro português a matar toiros, a cavalo, a estoque. Em Portugal, consagrou-o o povo como sendo "o maior". Era-o, de facto: o maior vulto da história do toireio a cavalo em todo o mundo.
Depois, não mais parou de empolgar as arenas, senão quando o acidente da queda de um cavalo aniquilou seu filho e o desgostou para sempre de honrarias, ovações.
Contudo, aos 75 anos - salvados três cavalos do assalto infame da negra saga de ocupações predatórias - não lhe faltou coragem para enfrentar, de novo, a vida nos redondéis. Por fim, na Golegã, quando serenamente preparava um dos corcéis, veio a enfrentar a morte - derradeiramente.
Estava a cavalo, enforquilhado na sua sela-charrua; pés bem firmes nos estribos da honradez, da dignidade.
Pelos olhos nublados, entre terra e céu, ter-lhe-iam desfilado, nos cenários edénicos verde-azuis das lezírias e calmosos verde-pardos das charnecas, essas montadas fiéis em que se prolongara a sua imagem cavaleira: Relâmpago, Santander, Pregonero, Alpompé, Lidador, Numerário, Quo Vadis, Pincelim, Sultão, Gaio, Malhinha, Marialva, Temporal, Gaiato, Ribatejo, Glorioso, Garoto e tantos outros, crinas ao vento, alados como pégasos. Também os toiros, não como adversários de violência animal, mas como nobres lutadores leais (que não os homens semeadores de ódio) e sobretudo aquele inesquecível Trompeta que foi base da sua ganadaria de sangue Urquijo.
Inscreveu-se Núncio ao centro de um triângulo: Toiro, Cavalo, Terra. Triângulo iluminado de amor, quase signo da Pátria que ele visceralmente vivia. Nunca a traiu. Quem da vida faz altar de trabalho e esperança não pode - não sabe trair.
À terra desceu, entre o amor dos homens - não da escassa escumalha arrebanhada por traidores rapaces, mas do povo-Povo, em cujas veias corre sangue puro, como os ares lavados das manhãs campestres: seiva da própria terra.
Morto para a Pátria - com a Pátria -, outro triângulo mais alto o ilumina: o signo de Deus.

Mascarenhas Barreto

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